Em meio a pressão de farmacêuticas, Anvisa avalia flexibilizar ‘RG de remédios’

Sistema de rastreabilidade é discutido desde 2009

27.nov.2020 às 10h00

Natália Cancian

BRASÍLIA

Discutida há mais de dez anos, alvo de sucessivos adiamentos e prevista agora para 2022, a criação de um sistema de rastreabilidade de medicamentos voltou à mesa de discussões na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que deve agora avaliar uma possível mudança nos prazos ou na lista de produtos.

A ideia do sistema é criar uma espécie de RG para cada remédio, por meio de um código bidimensional e outros dados que seriam colocados nas embalagens.

Com isso, seria possível acompanhar o caminho desses produtos da indústria até a venda nas farmácias. O objetivo é aumentar o controle dos medicamentos e evitar falsificações, por exemplo.

A entrada em vigor do sistema, porém, é tida como incerta.

A regra atual prevê a implementação até abril de 2022. Farmacêuticas, contudo, questionam essa data e pressionam a Anvisa para que o sistema tenha prazos escalonados —o que poderia estender a implementação completa para depois de 2024, segundo uma das propostas já na mesa.

Os argumentos principais estão em possíveis custos do processo em meio a alta do dólar, dificuldade em obter fornecedores de máquinas para instalação dos códigos e risco de ter de paralisar a produção para adequar as embalagens, diminuindo a oferta de remédios.

Embora ainda não haja consenso entre diretores da Anvisa, ao menos um deles já apresentou parecer favorável a uma mudança no modelo.

Na proposta, que foi defendida em reunião no início deste mês pelo então diretor Marcus Miranda, a ideia é que o prazo inicial valha apenas para 10% dos medicamentos. Para os demais, o prazo passaria ser escalonado nos anos seguintes.

Inicialmente, a Anvisa previa implementar a rastreabilidade para todos os medicamentos sujeitos a prescrição médica até abril de 2022.

Já a ideia apresentada por Miranda prevê alterar a lista de produtos e iniciar a rastreabilidade com medicamentos de controle especial (que costumam exigir outros tipos de receita, como psicotrópicos) e antimicrobianos. Neste caso, os prazos seriam divididos entre 2022, 2023 e 2024.

A proposta não deixa claro como ocorreria para os demais remédios —no voto, no entanto, há uma sugestão de que a Anvisa revise a lista anualmente para inclusão de mais categorias de medicamentos. A estimativa atual é que 4 bilhões de embalagens circulem por ano no país.

Após a sugestão, duas diretoras pediram vista do processo, e Miranda deixou a agência com entrada de novos diretores —regras da Anvisa, porém, preveem manter o voto do anterior nestes casos.

Dias antes da proposta, o diretor-presidente da agência, Antonio Barra Torres, havia sugerido que as empresas apresentassem até o fim deste ano um plano de implementação da rastreabilidade, mantendo o prazo final de 2022. Barra, no entanto, pode voltar a analisar o tema.

A previsão é que o debate seja retomado em dezembro.

O QUE É A RASTREABILIDADE

Sistema prevê que cada caixinha de remédio tenha uma espécie de ‘RG’ que permite controlar o caminho dos medicamentos da indústria até a venda ao consumidor. Deve valer para remédios sujeitos a receita, com exceção daqueles ligados a programas do governo e fitoterápicos


>> 4 bilhões

foi o volume de medicamentos sob prescrição médica fabricados em 2019 no Brasil


COMO FUNCIONA

1 – Embalagens ganham na fábrica um código bidimensional (DataMatrix) e número único de identificação, acompanhados da data de fabricação, validade e número do lote

2 – Código começa a ser registrado a cada etapa do caminho, e é enviado dentro de prazos específicos

3 – Informações vão para um banco de dados da Anvisa, que poderá saber o caminho do remédio


PARA QUE SERVE

Ideia é que sistema aumente o controle dos remédios sujeitos a prescrição médica, ajude em medidas de recall e a evitar falsificações


O QUE DIZ A LEI

Prevê prazo de implementação de três anos após o fim de uma fase experimental –o que seria em abril de 2022


O QUE ESTÁ EM DISCUSSÃO

Anvisa abriu um processo para discutir detalhes da implementação do sistema. Um dos diretores sugeriu que empresas enviassem, até o fim deste ano, um plano de como isso será feito, mantido o prazo para abril de 2022

Outro propôs que medida inicie apenas com alguns tipos de medicamentos, caso daqueles tidos como de “controle especial” e antimicrobianos, que teriam prazo escalonado de 2022 a 2024 –o que, na prática, pode flexibilizar os prazos

Discussão foi suspensa após pedido de vista

O QUE DIZEM AS EMPRESAS

Parte delas pede que prazos sejam escalonados. Argumento é que implementação neste momento traria alto custo às empresas em meio a alta do dólar e necessidade de paralisar produção, o que traz risco de desabastecimento

Até lá, a possibilidade de haver flexibilização nos prazos tem sido defendida por algumas associações do setor, ao mesmo tempo em que divide especialistas.

“Queremos discutir porque surgiram várias preocupações, como um impacto na produtividade. Tem software e maquinário que precisa adquirir, e estamos ainda enfrentando uma pandemia”, diz Telma Salles, da Progenéricos (Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos).

Para ela, o ideal seria que houvesse prazos divididos ou fosse concentrado apenas em medicamentos que necessitam de maior controle. Ela diz ver uma brecha para isso.

“A lei diz que tem de estar com rastreabilidade pronta, mas não fala em fazer tudo de uma só vez”, aponta. Segundo ela, experiências de outros países, como a Turquia, apontam risco de impacto na produção.

Há ainda outros argumentos. Em reunião da agência, o gerente regulatório da Alanac (Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Nacionais), Fernando Marcussi, citou a possibilidade de aumento do custo de alguns remédios de R$ 0,11 a R$ 0,15. A medida, porém, não é consenso.

Essa, no entanto, não é a primeira vez que se discute no país uma mudança nos prazos da rastreabilidade.